sexta-feira, 18 de junho de 2010

Meu "ensaio sobre a cegueira" particular

Em meados de 1998, eu trabalhava em um estúdio de fotolito, das três da tarde às onze da noite. Nas horas vagas e solitárias era acompanhado por vários escritores, entre eles, o já saudoso José Saramago. "O Ensaio sobre a cegueira" era o segundo livro que eu lia do autor. Não sei ao certo se todos conhecem o teor daquele livro, contudo, relatarei aqui um pequeno caso curioso que me ocorreu durante a leitura.

Estava completamente envolvido com a degradante situação que imperava no sanatório – sentia-me já um entre aqueles vitimados pela cegueira branca –, quando logo após as mulheres terem entregado seus corpos aos brutos homens que se colocaram na posição de superiores perantes os outros cegos através da violência, páginas brancas surgem a minha frente. Uma dezena de páginas brancas. E quando a história retorna, a mulher do dentista e seus companheiros já estão nas ruas da cidade abandonada, acompanhados de um cão.

Num primeiro momento, senti-me incomodado com aquilo, liguei para a editora, expliquei o caso e eles me pediram para enviar-lhes o livro com a nota-fiscal de compra que o mesmo seria trocado por outro, completo. Logicamente, aquele havia sido um erro de impressão, pois já folheei outros exemplares da mesma edição desse título e lá estavam as páginas que faltavam ao meu exemplar.

Todavia, passei a entender aquele vazio como um presente dado a mim pelo escritor. Aquelas páginas em branco eram a minha própria porção da cegueira branca, eram o meu momento de reflexão, eram o meu ensaio sobre a cegueira. Abracei aquele livro como sendo uma relíquia, uma edição especial, premiada, que veio pousar em minhas mãos e clarear muitas das minhas idéias sobre mim e sobre o mundo.

Nunca troquei o livro. Emprestei-o para alguém, não sei quando, não sei onde, e desejo que esse alguém também tenha tido o mesmo momento de cegueira que tive ao encontrar as páginas brancas no caminho e que possa, como eu, preenchê-las com muita reflexão e visão.

Um comentário:

  1. Cego, cego-me por não ver que livro-me de me ver quando vejo-me por inteiro imerso na cegueira branca do vazio interior.

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