quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Mil e uma lâmpadas

Já pensando na fila que enfrentaria no caixa do mercado, respirei fundo, quase prevenido, e fui às compras. Não precisava de muito. Nada que não forrasse a cestinha azul.

Dez produtos! Onde já se viu, limitar a quantidade de coisas deliciosas e inúteis que cabem naquelas cestinhas azuis de mercado. Isso por acaso não vai contra as leis básicas do consumo inconseqüente?

Já dentro do palácio iluminado, lembro-me de adicionar à lista de compras uma lâmpada nova para a sala de estar. No meu caso, sala de estar, de ficar, de comer, de dormir, tudo dependendo das circunstâncias.

Com a cestinha azul lotada, transbordante e já na fila rumorosa que rasteja, rastejo eu. Rasteja a cestinha azul ao chão impulsionada por meus pés preguiçosos. Flutua pelo corredor dos frios o corpo sinuoso da minha vizinha. Ela mora dois andares acima do meu apartamento, eu no 705, ela no 903. Linda, loira, cabelos lisos, voluptuosa e, pra piorar, simpática. Não tem como não arrastar uma asa para ela. E tudo o que acontece entre nós, nosso relacionamento caliente, cheio de fantasias eróticas das mais loucas, acontece no espaço entre o nono e o sétimo andares e dura cerca de dois segundos. Daí, entro no elevador, a cumprimento e me calo.

Ela passa por mim, flutuando, com os cabelos ao vento, toda propaganda de xampu, me olha, me cumprimenta e some em meio a frutas, verduras, suspiros e olhares furtivos.

Uma moça invejosa – e feia, a coitada – que está logo atrás de mim na fila do caixa, me dá um leve empurrão do tipo "acorda, mané, a fila tá andando", tropeço no meu cadarço desamarrado e na cestinha azul ao chão, que leva um chutão que derruba a lâmpada da sala de estar que, por sorte, tem seu choque amaciado ao aterrisar sob um saco de batatas fritas que caiu antes. Olhei atravessado para a delicada jovem feia, catei meus quase pertences e os depositei na cestinha azul.

Preocupado com a queda da lâmpada, resolvi inspecioná-la a procura de rachaduras ou outros danos que viessem a comprometer a funcionalidade da dita. Saí da fila e fui testá-la no corredor onde outrora estava exposta. Ao encaixar a rosca da lâmpada no bocal de teste, ela escorregou da minha mão. Consegui pegá-la antes de espatifar-se no chão e, tal qual um péssimo malabarista num sinal de trânsito, fiquei tentando equilibrá-la, até que num paf a lâmpada virou uma fina fumaça branca no ar. Um redemoinho começou a girar em meio àquela poeira branca e a expandiu-se e do centro rotor surgiu um homem de feições árabes que flutuava em vestes coloridas e esvoassantes no corredor das lâmpadas do mercado. Era um gênio. Era um absurdo. Era tudo o que eu queria. Três desejos agora era tudo o que eu queria.

O gênio era um clichê flutuante. Contou-me toda a história de sua vida, de como foi parar naquela lâmpada, das mais de mil e uma noites em que ficou ali trancafiado e todo prestimoso disse-me que eu tinha direito a três desejos quaisquer que ele realizaria com pertinácia e aprazimento. Essas foram suas palavras: pertinácia e aprazimento. Ele falava um português polido. Mal sabe ele que aqui por essas bandas a língua portuguesa sofre de mal de Parkinson e jaz num catre vagabundo na reluzente sala do novo acordo ortográfico. Meus pêlos têm acento circunflexo. Meus ungüentos têm trema.

Quanto aos três desejos? Bem, pensei na vizinha do 903, na feia da fila do caixa, em um apartamento novo, um carro novo, viagens interplanetárias, na capa da Playboy de junho de 1998, em um helicóptero, uma ilha, uma tartaruga gigante voadora, em superpoderes, etc. O gênio, impassível, perguntou-me mais uma vez quais seriam os meus três desejos. Pedi a ele que sumisse do planeta Terra toda e qualquer arma de fogo, de pistolas de festim à bombas nucleares. Em seguida, pedi a ele que todo o tipo de moeda, dinheiros, barras de ouro, ações simplesmente desaparecessem.

Acostumado a realizar desejos individualistas de homens e mulheres em busca de poder, fama e fortuna, o gênio, curioso, perguntou-me o por quê daqueles desejos tão estranhos. "Percebes que seus desejos podem causar sérios problemas à humanidade?" Disse a ele que sem as armas de fogo a humanidade teria que sentar e conversar sobre como resolver os problemas de estar sem dinheiro. "Há ainda as armas brancas, as mãos e a maldade dos homens, como nos tempos de onde vim", cutucou-me o gênio. Isso duraria pouco nos dias de hoje. Tamanha barbárie seria contida em pouco tempo, disse eu. Sou um romântico, um apocalíptico, um utopista. Fazer o quê?

Não acredito que o tenha convencido com minha resposta. Não me importo, pois ele estava ali flutuando com seu turbante colorido para realizar meus desejos e não para questioná-los.

"Falta ainda o derradeiro desejo, meu amo", disse o gênio.

"Desejo acordar desse sonho, gênio."

* * *

O murmúrio foi ficando mais e mais alto. Meus olhos abriram e os vultos ao meu redor contorciam-se. Com a visão mais nítida, percebi as prateleiras do mercado. Senti uma dor forte na parte de trás da minha cabeça e fui até lá com uma de minhas mãos. Havia sangue na mão. Havia sangue nas duas mãos e cortes profundos nelas e nos braços. Fui erguido e levado para fora do mercado onde uma ambulância me aguardava. Fui depositado rapidamente dentro da ambulância. Estava amarrado à maca. Só pude levantar minha cabeça e ver pela fresta da porta traseira da ambulância que se fechava o olhar preocupado da vizinha do 903.

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