segunda-feira, 9 de março de 2009

Sem fôlego

Cedendo em definitivo ao cansaço, eu e o estranho nos deitamos na grama seca, cada um carregando nas mãos as camisetas enxarcadas de suor, lama negra e sangue. Na minha cabeça imperava um conflito sem fim em razão do que havia ocorrido cerca de treze horas atrás. O estranho preocupava-se (e confiava muito nisso) com o que viria a acontecer conosco se fossemos recapturados nas próximas horas. Falava nisso o tempo todo através de um sotaque sulista carregado de erres robustos e uma voz grave, desafinada, mortificada.

O calor ardia em nossas faces naquele início de tarde quente de outubro. Ouvia-se apenas a nossa respiração. Ofegante. Trêmula.

Meu peito prestes a explodir sentia como se cada inspiração, sofrida, fosse a última; parecia não haver oxigênio suficiente a minha volta. Saltei no pescoço do estranho, que estava caído ao meu lado, estrangulando-o, enfiando as pontas dos dedos sujos de terra, as unhas roídas, no pescoço suado do homem, a mão escorregava, ele não reagia, ainda respirava, enfiava os dedões com mais força, apertando o pomo de Adão, grunhindo, os meus joelhos sobre o peito do homem, barrando o ar que teimava em inflar seus pulmões, sufocava-o, para que o ar fosse só meu, que apenas eu usufruisse do oxigênio e toda a energia colossal que irrompeu de meu corpo naquele momento se esvairia para que, em êxtase, eu prolongasse ao máximo o inevitável. Delirium.

Uma brisa passou pelo meu corpo e respirei calmamente. O estranho estava adormecido ao meu lado. Havia terra preta escorrida em seu rosto, o olho direito ligeiramente inchado e roxo, sangue coagulado num corte em seu nariz, as costelas aparentes denunciavam o estado físico abalado, os dedos esqueléticos das mãos, uma aliança vacilava no dedo anelar da mão direita, os pulsos envolvidos por cicatrizes de cortes profundos, provavelmente cordas, marcas de queimadura cobriam o tórax. Pelo que passou esse homem naquele lugar? Eu reconhecia apenas os cortes do arame farpado nos braços e pernas pois os carregava em mim também. Ainda estavam frescos e ardiam muito a cada arquejar. Quanto tempo esse homem ficou preso naquele lugar? Quanto tempo eu fiquei preso naquele lugar? Quantos éramos naquele lugar? Quem éramos naquele lugar?

Recordo-me apenas do gás lacrimogênio nublando as ruas, as mãos protegendo os olhos, gritos, sombras, sirenes, empurrões, tropecei no meio fio e caí com a cara na calçada molhada, pude sentir o gosto do sangue em minha boca, fui arrastado pelo colarinho por uns cinco metros, desmaiei num pam, acordei num psiu, vi gente jogada no chão enlameado, feixes de uma luz azul atravessando as frestas da parede do que parecia ser um galpão velho, escuridão, grilos, cigarras, passos firmes na grama, sussurros, um buraco cavado sob as ripas, só uma coisa na cabeça, lama no peito, arame farpado, mata densa e uma sombra que eu seguia.

Por um instante pude sentir o mundo girar. Olhei para cima sem temer o sol e fiquei cego como o cego que lembra de sua infância quando ainda podia ver e que chora o sentido perdido ao acaso. Aos poucos a visão voltou como se várias lentes coloridas fossem removidas de meus olhos uma a uma, lentamente. O céu estava azul como jamais vira antes, sem nuvens, imenso. Sentei na grama com a cabeça sobre os joelhos encolhidos; num abraço amigável, enlacei-me. Estou inteiro, pensei.

A sinuosa extensão de terra batida que percorremos por horas, fugidos, assustados, quase ilesos, parecia não ter começo nem fim, perdia-se no horizonte distante, e mesmo ali, do topo daquele morro seus limites perdiam-se na imensidão verde, eram invisíveis, intocáveis aos olhos. Havia em mim apenas a certeza de não estar mais sendo perseguido, não à luz do dia, e um breve alívio desenhou um sorriso perene em meu rosto, silencioso, um suspiro profundo...

Súbito, o estranho salta do chão como um gato assustado, as quatro patas tesas, as garras enfiadas no chão, os pêlos eriçados nas costas, um rosnado, a cabeça de coruja girava em trezentos e sessenta graus, os olhos esbugalhados, vidrados, pupilas dilatadas, procurando algo no ar. Talvez procura-se por mim, para vingar-se de meu ataque simulado. Eu não estava mais ali. Estava agora encostado em um velho sicômoro solitário, ainda frondoso ao fim da primavera, averiguando a área com a mão sob os olhos e espantando o medo que nos levou até ali.

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