quinta-feira, 30 de abril de 2009

Gripe sovina

Começou com um espirro, que conseguiu conter com uma das mãos. Salvou a tela do monitor de uma enxurrada viscosa. Infelizmente, não escapou o porta-retratos, que ostenta uma fotografia sua usando um belo chapéu mexicano.

Concentrava-se em uma planilha complicadíssima naquele momento. Números e cifras astronômicas preenchiam o ecrã. Olhou para os lados e ouviu um ou outro colega dizer "saúde", "deus te crie", ao que agradeceu, um pouco encabulado por quebrar o silêncio do ambiente, enquanto apalpava o terno em busca de um lenço. Não encontrou o lenço e levantou-se. Dirigia-se ao banheiro para lavar as mãos e conferir se não havia ficado com algum resíduo inconveniente pendurado em suas narinas quando espirrou mais uma vez.

Dessa vez o espirro foi muito forte e sem aviso, não houve tempo para proteger o recinto do esguicho violento, qual o bote de uma cobra peçonhenta, que salpicou o ar, seguido de um espasmo que contorceu seu corpo em ondas de calafrios. Gemia e tentava recompor-se enquanto ouvia os protestos dos colegas ao redor, "cubra o rosto, pô", "use um lenço". Apressou o passo e entrou no corredor que leva ao banheiro.

O zunido dos computadores, o silêncio dos ares-condicionados, o martelar dos dedos nos teclados, o rugido da cafeteira, o zum-zum-zum das cabeças das impressoras, a miscelânea de canções nos fones de ouvido, o choque dos cabos dos elevadores no sobe e desce, os saltos altos espetando o carpê... lacrimejavam seus olhos, rangiam-lhe os dentes, eriçavam-lhe os pêlos, doiam-lhe os ossos.

Os espirros o impeliam para trás a cada passo que dava em direção ao banheiro. Ao passar pela copa ouviu a piadinha óbvia da copeira e as risadinhas de duas colegas encostadas no batente da porta. Espirrou e espirrou. O corredor tornara-se longo, kilométrico. Sentia-se exausto com a incessante metralha de espirros, arrastava-se pelas paredes, era empurrado de uma parede a outra, como em um corredor polonês, os pés pesados colados no piso; parecia derreter e deixar um rastro víscido por onde passava; interjeições desgostosas ecoavam pelos corredores e salas.

Encontrou uma face distorcida no espelho. Fungava, lacrimejava, sua carne era esponjosa. Mal conseguia erguer os braços para lavar o rosto. Mais um espirro. Sentiu uma forte dor em seu cóccix, uma dor espiralada seguida de uma pressão em sua calça, o cinto forçava sua barriga para dentro e abriu-o rapidamente, desajeitado. As calças caíram e mais um espirro levou-o ao chão, não sem antes bater com força seu nariz na pedra marmorizada que sustentava a pia moderna do banheiro luxuoso. Retorcia-se encolhido no chão com dores pelo corpo todo.

A metamorfose evidenciou-se quando o homem tocou o apêndice espiralado que agora tomava o lugar de seu cóccix: um rabo de porco, peludo e pelado. Seus olhos saltaram ao sentir aquele corpo repugnante com sua mão direita, enquanto que, na mão esquerda, encontrava-se o nariz sangrento, enorme, inchado, gotejante. Levantou-se com muito esforço para olhar-se no espelho e encontrou um focinho de porco, qual uma tomada, em seu rosto. Havia muita gordura em toda a face, a pele rósea com manchas escuras e pêlos grossos que saiam de sua sobrancelha e buço, olhos pequenos por detrás da pele flácida que cobria todo o seu corpo. Os espirros passaram a ser seguidos de um som peculiar:

– Atchim! Óinc! Atchim! Óinc! Atchim! Óinc!

Naquele dia, e nas semanas seguintes, chafurdaram na lama os porcos de todas as nações, ricos e pobres, homens e mulheres, crianças e velhos, vítimas de um vírus que, supostamente, teve sua origem em rebanhos de porcos, no México. Ou seria esse mais um dos milhares de sinais da natureza – sendo esse de uma ironia singular – revelando, mais uma vez, aos seres humanos sua fragilidade diante dos ventos que sopram, das terras que tremem, das ondas que engolem cidades e desses minúsculos seres assassinos que, vez em quando, parecem infiltrar-se em nossa sociedade, enviados de um reino invisível aos nossos olhos pequenos, por um rei, ou rainha, preocupados com a perpetuação de sua espécie, os terráqueos, diante dessa turba alienígena que somos?

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